I
O
vento soprou-a com força, num turbilhão. Acabou por encolher até bater num
tronco nodoso. Agarrou-se e subiu. As gotas de água começaram a cair, primeiro
esparsas e depois densas e fortes. Abrigou-se debaixo de uma folha meio seca.
Sem dar por isso subira até meio da árvore. A folha era rija, côncava e parecia
segura. Porque raio saíra do seu canto atrás do armário? Como regressar depois
de tamanha viajem levada pelo vendaval. Não gostava de árvores desconhecidas e
enormes como aquela. Encolheu-se e deixou seguir o temporal. Tinha de voltar a
casa, tecer a sua teia num cantinho seguro.
II
Olhou
pela janela, caneta na mão, meio atordoada. Nada lhe saía. As ideias pareciam
todas secar ao tocar o papel. Mania estúpida a sua, de ainda achar ser capaz de
criar alguma coisa. E, mais ainda, julgar que era verosímil escrever histórias
para crianças, dar sentimentos humanos a animais, quanto mais a um aracnídeo
minúsculo que mesmo assim tinha tudo para pertencer a um filme de terror mais
do que a um conto infantil. Uma simpática aranha predadora que para se
alimentar tinha de liquefazer literalmente as suas presas… Como poderia criar
uma história em volta de tal ideia sem parecer uma sequela do Alien? Será que
havia aranhas com hábitos menos aterradores? Mesmo as formigas se assemelhavam
a exércitos diligentes, eficazes, mas implacáveis. Desde sempre que a ideia de
histórias infantis a perseguia. E a curiosidade pelos animais e pela sua
observação, com lentes poéticas, sempre a assaltara uma vez por outra ao longo
da vida. Cousteau a preto e branco povoara-lhe a infância de imagens. Calypso…Polvos,
estrelas do mar, baleias e corais deviam ter sido a sua vida perdida de bióloga
ou de fotógrafa. Sonhara com cidades submarinas num futuro ao alcance dos
sonhos, nas páginas de livros. Mas a natureza, se bem que bela, tinha uma
faceta cruel que era mesmo assim, a sua própria essência. Fugir dos homens para
se refugiar na ideia paradisíaca de uma natureza boa para escrever era o mesmo
que acreditar em Rousseau e no bom selvagem… De certo modo, corrigira-se com o
estudo da História, com o resultado evidente de entender cada vez menos a
natureza humana e o fluir das coisas! E, ao crescer, tornara-se por demais
medrosa para ser aventureira. Por mais que gostasse de culpar a sua família
semi-disfuncional pelo desaparecimento da confiança, a verdade era que o medo
era pessoal, e acompanhado de uma ansiedade que nunca soubera domesticar,
tinham-na desviado da vida de aventura que sempre lhe adornara a imaginação.
III
A
folha estremecia e reverberava à cadência das bátegas. Presa pelo vento num
recôncavo rugoso do tronco, era um refúgio seguro. A pequena aranha sarapintada
encolheu-se até parecer um pequeno ponto, escondida da água e do vento.
IV
Bem,
o melhor era escapar de novo e não escrever nada, já que não conseguia suportar
as coisas tal como são. Porque é que, já velha, continuava a precisar de
inventar mundos cor de rosa que não existiam, manchados de uma esperança
ilusória? A crueza baça das coisas já não lhe dera lições suficientes? Nunca
seria um Torga, sabia-o bem. Sempre sonhara, depois de uma vida de trabalho
estúpido, em que trocara os sonhos por uma segurança que de nada valia afinal, que
um dia teria netos e que o olhar destes a faria de novo acreditar na magia das
coisas e nos sonhos de infância: imaginar florestas imensas, com seres meio
fantásticos, meio reais, e em que a luz triunfaria sempre sobre as trevas, num
maniqueísmo simplório mas resplandecente. O que havia de mal nessa
simplicidade? Compreender o complexo, a zona cinzenta do nevoeiro humano apenas
a levara a justificar intelectualmente o que no fundo todos sabem que não é
defensável e que fica bem, em certos meios, dizer que se compreende… Contas
feitas, o rei continuava brilhantemente nu… No fundo aspirava apenas à
aceitação por parte de alguém, a ser valorizado e a ser amada. E, nada disso
fazia parte do quinhão que lhe parecia reservado. A sua família de classe média
recém-adquirida, aparentemente feliz e equilibrada tinha-lhe proporcionado uma
infância materialmente estável, sem que nada lhe faltasse. Estudos razoavelmente
cuidados, colégio e tudo. Nunca achara nada estranho, o seu mundo era o único
que conhecia. Um pai sempre em viagem, uma mãe e uma avó a sustentarem-lhe os
dias entre o amor, uma culpabilidade inata e uma desconfiança insana. Nada de
irmãos, coisa com que sempre sonhara. Uma educação algo severa, valores
respeitavelmente tradicionais. Quando o pai voltava, discussões com a avó, um
clima que pressentia estranho e que a fazia refugiar no seu mundo de sonhos, de
construções de Lego e de histórias imaginadas com os bonecos plásticos que
todos os verões acompanhavam os gelados. Preferia-os às bonecas. Outros amigos,
quase não tinha. As filhas das amigas da mãe, com quem brincava no jardim da
cave do prédio em que inicialmente viviam, os filhos dos amigos ou colegas do
pai que estranhamente tinham todos vindo do Algarve viver para o mesmo subúrbio
da capital. Primos, só um, bastante mais velho, de quem os avós paternos
gostavam muito. Era um adolescente surdo-mudo que tinha vivido com os seus
próprios pais enquanto pensavam que nunca iriam ter filhos. Toda a família julgara
que o seu primo seria o único rebento fiável. E depois aparecera ela,
inesperadamente. Para o pai, a falha épica de não ser um rapaz. Preenchera
certamente os desejos de sua mãe, uma mulher simultaneamente frágil, forte,
sensível e bela. Órfã de pai desde muito cedo, vivera com a sua avó uma ligação
indestrutível feita de contradições que se lhe tinham tornado mais evidentes ao
longo da vida. No seu mundo, elas eram indissociáveis e apenas a presença
pontual do pai perturbava o funcionamento distorcido daqueles laços de que ela
se tornara o terceiro elemento involuntário.
V
Aranha sarapintada?
Porque não uma bem vermelhinha, minúscula, como as que viviam alegremente na
campainha do portão da frente? Não sabia nada sobre elas, nunca soubera grande
coisa sobre animais da terra, do campo, nem sobre as árvores e as flores. Será
que as aranhas adormecem? Será que têm medos? Como poderia ser um sonho de
aranha? Kafkianos demais, os pensamentos pareciam-lhe ridículos. Escrever
contos infantis para quê? Sempre a ideia dolorosa de que de nada haviam servido
os seus sonhos de construir uma família sólida, feita de laços de amor e
lealdade verdadeiros. Conseguir criar sonhos que durassem mais que ela. Hubris… Não tinha nada. Os dois filhos seguiam
caminhos paralelos. Entre a homossexualidade arvorada em bandeira de
afastamento e a arrogância juvenil de quem afirma certezas para tapar os
buracos dos seus medos, tudo os afastara dela. Também nunca fora a mãe ideal. A
maternidade surgira um pouco como tudo na sua vida, sem uma escolha clara e
ponderada, sem um desejo definido, Pensava demais, hesitava demais e depois as
coisas sucediam e tinham de ser vividas. Casa, casamento, filhos nunca tinham
sido objetivos em si. Queria sentir-se amada, sim, parte de um grupo, sim. Isso
tivera um preço. O casamento era uma âncora preciosa, mas prendera-a, como
todas as amarras. Os filhos não eram desastres, mas estavam longe. Não os
tivera para si, tivera-os para serem livres, e eram. Só ela é que não, perdida
entre obrigações, sonhos serôdios e a consciência pungente da sua finitude. No
seu mundo cada ano trazia a saudade dolorosa de uma partida. As figuras da sua
infância tornavam-se memórias, transparências.
VI
No
escuro que se instalara, encolhida junto à casca rija da árvore, a aranha
resolveu esticar-se e espreitar a medo. A água já não batia com força na folha
seca que protegia o seu pequeno refúgio. Também já não havia sol, e as nuvens
misturavam-se na pintura da noite. Seca, abrigada do vento, resolveu
aventurar-se um pouco mais, esticando as patas sobre o tronco rugoso.
VII
Sabia que a forma como
pensava e se expressava não era bem a dos outros. Calava-se e escondia-se, só
apara ser aceite. Quase sempre falhava estrondosamente no capítulo pessoal,
onde uma ingenuidade triunfante se instalava quando não devia. Não por ser
forçosamente estúpida, mas porque era estupidamente crente na bondade humana.
Achava-se capaz de ler as situações alheias com relativa lucidez crítica, mas
fugia das suas. Nem o instinto intuitivo que herdara da mãe a protegia, porque
o contrariava e ignorava até ao limite. Pressentia os desastres e avançava como
se fossem inevitáveis. Aprendera a fingir serenidade para sobreviver. Apesar do
medo de tudo, avançava, cada vez mais só no seu casulo.
VIII
A
noite avançara. Como seria viver numa árvore? Conseguiria fazer outra teia?
Valeria a pena? E outros animais para sobreviver? Existiriam lá outras aranhas?
Lentamente, aventurou-se tronco fora.
IX
E agora o que fazer
com o raio da aranha sarapintada? Mudar para uma lagarta? Um camaleão? Ou para
um besouro de asa azulada que de deleitava nas flores da lavanda pela manhã?
Não sabia nada dessa bicharada, só sabia pasmar com o brilho das asas
desajeitadas sob o sol. Agora dera-lhe para aquilo, observar os bicharocos do
jardim sempre que podia. Trazia-lhe uma paz idiota, como se tudo se encaixasse
no olhar. Custava-lhe renunciar às paixões, sobretudo porque não a vivera em
pleno, sempre a pensar que seriam “amanhã”. E o amanhã tornara-se sempre num
ontem, sem que os sonhos chegassem a florir. As paixões que domesticara
faltavam-lhe agora, do fremir dos sonhos aos dos sentidos. Fazer o quê?
Falhara, e nada podia mudar o rumo do tempo. Não fora atleta por não gostar de
competir, recusara o preço ético exigido para o sucesso académico pleno, criara
uma família imperfeita e incapaz de acarinhar, ao contrário do que sonhara e
deixara a escrita para tarde demais. Responsabilidade sua, o não ter percebido
que afinal era ambiciosa, agora era só conseguir lidar com isso com dignidade.
A
velhice seria mais uma aventura. Nascera, tinha de morrer. Embora a ideia não
fosse agradável era tão natural como as noites de verão, cheias de um silêncio
morno. Podia ser que a morte fosse uma noite de verão sem grilos nem cigarras.
Ou podia ser que fizesse parte de tudo de novo, partícula inconsciente de qualquer
outra coisa que existisse. Bem, nesse sentido seria sempre imortal…
Sorriu.
Vaidade humana, a quanto desvario conduzes!