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terça-feira, 3 de agosto de 2021

Nevoeiro

 



    

De repente, caio numa prostração sem apelo. A angústia toma-me de assalto e sucumbo aos terrores antigos. O pôr do sol mantém as suas cores a ecoar atrás das sombras que crescem, pressinto o Tejo, longe da vista, numa fita azul acinzentada pelo nascer da noite. Até o cheiro antigo dos cacilheiros me vem à memória, mas nada disso me devolve a serenidade. Nem o fantasma do Terreiro Paço a adivinhar-se do outro lado, sólido e austero. Passo a passo, a realidade dilui-se em mil gotículas difusas.

 Por um instante, estou no portaló do Alcíon, a mover-se sobre o chão sujo em terra. Mãos nos cabos, os pés balançam-se com as ripas de madeira, ao ritmo da água. O casco negro, as letras brancas, ferrugem a escorrer, cheiro a navio e a peixe e eu a olhar os meus pés e a madeira em movimento ao lusco-fusco. Sempre gostei de saltar do navio e descer por ali abaixo quando era miúda. Sempre gostei das escadas estreitas onde na pressa de subir à ponte esfolava as canelas ou me enchia de nódoas negras. As melhores memórias vêm do Almourol… Gastava os dias a sujar-me na casa das máquinas, a entrar na cozinha ou a olhar o mar nas asas da ponte, pés pendurados para fora e rabo sentado nas baleeiras, com a cadelita deitada por perto. No convés, linguajar rude e fumo de cigarros. A perder de vista, um azul sem fim, uma linha líquida e brilhante. Passei o equador e vi peixes-voadores e tubarões.  Nunca tinha visto um céu feito só de estrelas, nunca tinha visto um horizonte feito só de mar. O gingar das ondas infiltrou-se-me na alma e nunca mais partiu. Binóculos ao pescoço, era pirata ou albatroz sempre que queria.

A vida era o que os dias traziam, simples, só porque sim.

Não sei porque é que a memória me traz traiçoeiramente tantas imagens. O estaleiro do Olho-de-Boi, não fora o nome, até parecia um lugar bonito quando eu tinha cinco ou seis anos e subia lentamente a estrada íngreme no carocha do meu pai. Tinha sempre medo que caíssem pedras lá de cima, o que acontecia de vez em quando. No topo, Almada ainda velha e castiça, sem os retoques de hoje. Poucas vezes lá voltei já crescida.

O sol e a água cor do céu foram ficando escondidos sob camadas sucessivas de vida cor de asfalto suburbano. A cada revolta colorida, a cada livro mágico, sobrepôs-se uma desilusão cinzenta e pesada. Acreditar nas pessoas tornou-se difícil, lidar com elas um exercício de cinismo aprimorado, mecânico e eficaz. Sobrevivi.  No meu livro, fui escrevendo os capítulos todos, com personagens a cinzento banal, sem devaneios. Sem espadas de piratas nem asas de albatroz.

Tantos anos depois ainda deambulo no mesmo labirinto. Por instantes vislumbro um horizonte. Acho que me posso apaixonar de novo por uma causa ou por um sonho, que nem tudo foi em vão. Mas o vazio cerca tudo, suga as energias e o céu sem estrelas funde-se com o breu das águas desta viagem fantasma. Tudo parado à superfície, à espera de me engolir nas profundezas. Nem o mostrengo me espera já, nem resta voz ao homem do leme. Apenas o silêncio e um terror telúrico de animal acossado. Sem toca para voltar, sem azimute que me oriente a fuga. Páro para deixar passar os dias. Leio, penso, procuro sentidos que não há. Nevoeiros cerrados, noites frias. O Bugio lá longe, solitário.

As memórias voltam. Num cacilheiro, vir cá fora engolir a brancura do ar e sentir as gotículas frias na cara era imperativo. O rio mudava, para trás o Cais do Sodré, longe como um fim de mundo que as sirenes anunciavam roucamente. Depois como por magia, o pontão emergia-nos no olhar, o barco estremecia num embate surdo e o mundo voltava ao normal. Cacilhas num mar de gente a correr para casa, passadas rápidas a fugir da noite. O nevoeiro misturado com o cheiro das castanhas e dos pregões. Parece que foi há mil anos, nunca tinha frio, nunca me deixava embaciar pelo cansaço.  Nevoeiro cerrado era o sonho sem fim de poder  viver nas nuvens.

Nevoeiro espesso, palpável, os sons distorcidos pela solidez do ar e a humidade salgada a entrar narinas adentro. Encalhada à espera de novas marés, oiço ao longe outros navios, miragens disformes saudando-se à distância.  O nevoeiro esconde-lhes as silhuetas negras, mas deixa imaginar o sol. Volto a ser criança e vivo a voar no meio das nuvens.


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