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segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Feriado


FERIADO

Cheira levemente a terra, num eco de chuva temporã. Está um dia bonito. Sereno. O tempo ainda não começou a contar.
Não sei o que fazer. Não tenho vontade de fazer nada.
Acordei cedo e sem saber porquê levantei-me em vez de tentar enganar a consciência com mais meia hora de sonolência agitada. Devia ir correr, andar de bicicleta ou esticar os músculos numa máquina de eficaz exercício, beber os litros de água da praxe e sentir-me satisfeita comigo própria por cumprir escrupulosamente o que era suposto produzir saúde e felicidade instantânea. Imediata e inadiável, a receita costuma satisfazer as hordas com eficácia. E meia hora de ioga, claro! Isto, juntamente com a dieta adequada para a intolerância alimentar mais recente, devia chegar para ter um dia feliz. Mas sempre tive a estúpida mania de ser ligeiramente desconforme. De ficar de repente, em sala cheia, perdida numa bolha de silêncios. 
 Não me apetece fazer nada, o tempo incomoda de tão presente nesta ausência de tarefas. Que raio! É tão mais fácil ter uma urgência qualquer para acudir… 
 As lembranças de outros dias chegam de mansinho, misturadas, desarticuladas: paisagens de janelas já inexistentes, de passeios perdidos. O cheiro azul do Tejo ao entardecer, a água a baloiçar sob o pontão, escura. Fumo e castanhas outonais. Gente a correr. O embate dos cacilheiros no pontão. E um Terreiro do Paço ao longe, noutra era, quando Lisboa ainda era minha, quando os recantos das ruas não tinham segredos nem abarrotavam de turistas.
  Tal como a cidade, não me reconheço. Os silêncios invadem tudo a ponto de retirar o sentido às coisas. Cada vez me sinto mais desconforme, mais estrangeira. Uma realidade desfocada em que me diluo toma conta de tudo.
 Só o cheiro do rio se mantém, puro, a segurar-me no tempo, num estúpido feriado.

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